
Anotações:
Juca Martins
05.06—15.07
Texto crítico de Fernando Morais
“Juca, soube como poucos trabalhar a fotografia humanista e libertária. Manoel […] Joaquim Martins Lourenço nasceu em Barcelos, Portugal, em 1949. Mudou-se com a família para o Brasil em 1957, aos 8 anos. Seu pai era pedreiro, sua mãe, dina de casa. Juca tem um irmão que também seguiu a mesma profissão, Delfim é fotógrafo e sua irmã, Maria Salete, costureira. Até os 18 anos pensava em ser artista, mas aos 18 anos fez um curso de técnica de impressão numa gráfica da Editora Abril. Em 1968 conheceu o trabalho de Lew Parrela, Roger Bester, George Love, Claudia Andujar, Cristiano Mascaro e outros craques daquela época. A Abril publicava, entre outros títulos, as revistas Veja, Realidade, Claudia, Quatro Rodas, responsáveis pelas grandes reportagens daquele período. […] Em poucos meses Juca estava no laboratório fotográfico, num primeiro momento secando as cópias contato, carimbando e devolvendo para a redação. Seu companheiro de trabalho era, ninguém menos, que João Bittar.”
O olho mágico de Juca Martins
Por Fernando Morais
Algumas profissões costumam atribuir às pessoas que as exercem uma natureza adicional. Uma capacidade de ver e sentir superior à de outros seres humanos, mesmo os mais sensíveis. Isso se dá em muitos ofícios. Um alfaiate experiente é capaz de afirmar, de olhos fechados, usando apenas o tato, se uma peça de casimira dá ou não um bom terno. Só de pegar na mão um tijolo, um pedreiro tem condições de prever se a casa vai ficar de pé ou não. O joalheiro descobre se o anel de ouro é falso após uma breve e superficial olhada… e assim por diante. Meia hora de conversa é suficiente para um bom repórter saber se dali sai notícia ou não.
O fotógrafo Juca Martins é dotado dessa natureza adicional, dessa capacidade; no caso dele, de ver o que nós, mortais comuns, não vemos. Tive o privilégio de descobrir isso cinquenta anos atrás, na primeira dobradinha repórter fotógrafo que fizemos juntos. Trabalhávamos ambos na revista Visão, ele como fotógrafo freelance eu como repórter.
Florianópolis tinha sido apontada pelo IBGE como a melhor cidade brasileira para se viver segundo critérios que anos depois seriam aprofundados e concentrados no Índice de Desenvolvimento Humano [IDH]. A revista queria uma reportagem especial sobre o que era viver nesse valhalla brasileiro e lá fomos nós.
Entrevistamos e fotografamos gente do povo, visitamos vários bairros e no final fomos recebidos pelo prefeito biônico da cidade, um jovem de 27 anos, de cabeleira negra e hirsuta barba chamado Esperidião Amin. Depois de vários dias de trabalho, a caminho do hotel, íamos os dois a pé pela calçada em torno da praça XV de Novembro, a mais tradicional da cidade, quando Juca parou: ”Espera um minuto. Achei a foto.” Colocou a Nikon diante dos olhos e apontou para a praça, na qual eu não conseguia enxergar nada de especial, nada que merecesse um registro. Não me chamou a atenção a figura de um idoso sentado sozinho num banco, protegido do sol pela copa gigante de uma figueira centenária – nem que naquela fração de segundo a praça, de mais de mil metros quadrados, parecia inteiramente deserta. Eu não vi, mas Juca viu. Nenhuma outra imagem poderia ilustrar tão bem o sentido da nossa reportagem.
Juca e eu voltaríamos a nos reencontrar, ainda nos anos 1970, durante o surgimento dos movimentos sociais na luta contra a ditadura militar. Ele como fotógrafo da agência F4 que criara com outros profissionais, e eu, dessa vez, como deputado e ativista político. Nas portas de fábricas e nos piquetes grevistas do ABC, nas passeatas estudantis que retomavam as ruas, nas perseguições policiais a prostitutas e travestis, na madrugada paulistana, um onipresente Juca Martins começava a produzir um riquíssimo registro fotográfico da luta pela redemocratização.
Em 1980 a Assembleia Legislativa de São Paulo instalou uma CPI para apurar as responsabilidades pelo espancamento de populares, religiosos e parlamentares em uma manifestação de repúdio ao governador biônico Paulo Maluf no bairro da Freguesia do Ó, na capital paulista. E foi, em boa parte, graças às fotos feitas por Juca Martins que os deputados conseguiram identificar e responsabilizar oficiais e soldados do serviço secreto da Polícia Militar diretamente envolvidos nas agressões. Os mesmos, descobriríamos depois, que haviam atuado à paisana – sempre à paisana – na repressão às greves do ABC.
Nossa dobradinha renasceria alguns anos depois do outro lado do mundo, sob o ano de 1982 em uma Beirute coberta de trincheiras de sacos de areia e fatiada em dez pedaços, cada um deles controlado por uma milícia armada. Viajáramos para cobrir o aniversário da fundação do Movimento de Libertação da Palestina, o Al Fatah, com a possibilidade de entrevistar seu criador, o engenheiro cinquentão Mohammed Abdel Rahman Abdel Raouf Arafat al-Qudwa al-Husseini, mais conhecido como Yasser Arafat – ou simplesmente Abu Amar, encontro que acabaria se realizando dias depois em uma fria madrugada na capital libanesa.
Passamos alguns dias rodando pelo Líbano conflagrado. Nos arredores da cidade de Tiro, na fronteira com Israel, em acampamentos guerrilheiros do Fatah, o olhar de Juca se fixava nos meninos combatentes, alguns com pouco mais de 12 anos, todos carregando fuzis de assalto AK-47 – armas que conseguiam desmontar completamente e remontar de novo em poucos minutos. No desfile militar do aniversário do Fatah, só o olho dele enxergou, no mar de soldados de farda e quepe verde-oliva, um solitário combatente com a cabeça inteiramente coberta pelo keffiyeh, o tradicional lenço palestino quadriculado em preto e branco.
Um momento significativo no fotojornalismo brasileiro ocorreu em 1980, quando Juca recebeu o Prêmio Esso de Fotografia – o equivalente, no Brasil, ao Prêmio Pulitzer –por sua impactante reportagem sobre as crianças abandonadas na Clínica de Menores Congonhas. Suas fotos, publicadas originalmente na Folha de S.Paulo, trouxeram à tona a dura realidade e o abandono enfrentados por esses jovens. O prêmio não apenas reconheceu o talento excepcional de Juca mas teve igualmente o papel de fazer emergir discussões sobre a crucial questão social do Brasil na época. A série de imagens da Clínica Congonhas também atraiu a atenção internacional, pois algumas dessas fotos foram adquiridas pela Biblioteca Pública de Nova York para seu acervo – fato que ressalta o profundo impacto, o mérito artístico e a sensibilidade do trabalho de Juca Martins ao documentar situações críticas como essa.
A arte da fotografia deu ao mundo gênios especializados em arquitetura, moda, esportes, animais selvagens. Juca faz parte desse time, com uma peculiaridade que marca sua carreira desde o começo. Juca Martins é um fotógrafo especializado em gente. Foi um privilégio ter feito parte da sua história, ainda que marginalmente. E é um orgulho ser seu amigo até hoje.









